Eu, 31 anos, vários reflexos brancos pela cabeleira!
Despedindo-se do inverno, um dia nublado, um corpo cansado, mas
uma alma ativa e aberta para o que pudesse acontecer. Assim eu me dirigi à casa
de Dona Cotinha, quase 90 anos e uma disposição incrível, para conversar com o
seu Ditinho. Chegando lá, não o encontrei, todavia para minha surpresa e
alegria o senhor José Lemes me recebeu, de peito aberto para uma conversa
franca e descontraída. Começou me contando dos avós, de como eles se
conheceram, que sua avó nasceu no dia 13 de maio de 1888, dia da assinatura da
lei Áurea, que libertou os escravizados, entretanto não deu condições aos
negros de terem uma vida digna, já que não tinham dinheiro, casa, trabalho. Ele
me disse, com a maior franqueza: “a igreja foi conivente com a questão da
escravatura, via tudo e não fazia nada”.
A cidade de Cambuquira, em Minas Gerais, é muito
representativa nesta questão, pois foi um local doado aos negros para que
pudessem começar a vida libertos, mas houve muita discórdia com os brancos para
que conseguissem permanecer no local.
Seu Zé Neguinho vira para mim e pergunta: “você sabe o
motivo pelo qual as cidades, principalmente as que possuíam escravizados têm em
sua grande maioria a Igreja Matriz e a Capela? Eu não tinha a menor ideia e
muito sabiamente, seu Zé me explicou que os donos das fazendas faziam suas
festas religiosas na igreja e os negros somente podiam entrar na capela, seria
como se a igreja houvesse construídos as capelas para os negros e as igrejas
para os brancos. Todavia, o negro ia para a capela fazer seus batuques e os
brancos ficavam encantados com a sonoridade, mas não iriam entrar em nenhuma
hipótese na capela, por isto com o tempo os negros foram permitidos a
participar das festas religiosas, para ao término destas, poderem fazer a festa
profana, com batuque e por isto também a igreja “dá” aos negros os santos
negros: São Benedito e Nossa Senhora do Rosário, para trazer os negros para a
fé católica.
Várias vezes seu Zé Neguinho me disse: “não adianta a gente
dançar congada e não saber a história por trás da congada, a gente precisa
entender como chegamos aqui.” Começamos a voltar a falar da família, que os
avós já faziam parte de congadas em Minas Gerais e em 1963, os pais decidem
sair de Monsenhor Paulo e vir para São Paulo, em busca de melhores condições de
vida. Moraram em algumas cidades do interior, em Santo André, até chegar em São
Bernardo do Campo, no Parque São Bernardo. Sempre quando voltavam a Minas
Gerais, iam para as festas de congadas, dançar se divertir, até que um dia, seu
Zé Neguinho com cerca de 20 anos pensa em montar a congada da família. Pela
questão de hierarquia, ele fala primeiramente com seu pai, que fica meio
relutante com a idéia, depois com seu irmão mais velho, seu Ditinho e assim
iniciam a Congada do Parque São Bernardo, há princípio apenas com membros da
família Lemes, que na época eram 7 irmãos de sangue e 1 de criação. Muito
interessante também as colocações de seu Zé Neguinho com relação a fé que seu
pai tinha e que fez com que conseguissem sair de situações muito difíceis.
Outro aspecto muito interessante de nossa conversa foi a
visita ao Centro de Memória da Família Lemes, que está sendo finalizado, em um
terreno próximo a casa da família. Seu Zé Neguinho fez e está fazendo toda obra
sem nenhum auxílio financeiro. O sonho dele é tornar o local um centro
cultural, onde tenha aulas de música para as crianças, aula de tecnologias para
os idosos, seja um espaço para discussão das questões do negro, de reunião de
diversas culturas: hip hop, rap, congada, samba, para produção de saraus. Há
uma vista incrível da comunidade como um todo, é um local muito representativo
e além de todos estes aspectos, haverá um espaço para contar a história da
família Lemes.
Nossa conversa finalizou falando da questão do negro, como a
raça está desarticulada, não há união e prova disto, segundo seu Zé Neguinho, é
ver que na maioria das escolas de samba hoje não há negros ocupando altos
cargos, o dia 20 de novembro, que é o dia da Consciência Negra, não há um
movimento ele mesmo disse que acha inútil o feriado, porque não trouxe
consciência alguma sobre a questão.
Voltei para casa muito feliz, com a sensação de que em
apenas uma tarde de domingo eu aprendi tantas coisas, que anos e anos não me
dariam e o quão rico e iluminado é cada ser humano!